terça-feira, 23 de junho de 2015
Rejeitámos negociar com os portugueses de cá (2.ª parte) – conta Joaquim Chissano, Ex-Chefe do Estado
APRESENTAÇÃO nesta edição a segunda e penúltima parte da entrevista em que o antigo Presidente da República Joaquim Chissano reflecte sobre algumas questões marcantes no percurso de 40 anos de Moçambique independente. Joaquim Chissano, primeiro-ministro do Governo de Transição (que conforme os Acordos de Lusaka integrou quadros de Portugal e da FRELIMO), ministro dos Negócios Estrangeiros nos tempos de Samora Machel e Presidente da República de 1986 a 2004, aborda, nesta parte, a interacção entre representantes do Estado português e da FRELIMO durante o Governo de Transição e alguns contornos da diplomacia moçambicana desde a proclamação da independência. Afirma, por exemplo, que os principais países ocidentais primeiro hesitaram em aceitar estabelecer relações diplomáticas com Moçambique, manifestando reservas em relação às opções políticas do Governo. Vai, nas linhas que se seguem, o diálogo com o antigo Chefe do Estado: Not. - Retenho uma afirmação, senhor Presidente, em que disse que a delegação portuguesa às conversações de Lusaka não estava mandatada em relação a alguns assuntos. Mas gostaria que descrevesse um pouco o clima no decurso das negociações no que diz respeito à confiança entre as partes. JC - Havia muita desconfiança da nossa parte. Isso porque quem estava a dirigir o Governo em Portugal era o general Spínola, um homem em quem nós não depositávamos nenhuma esperança nem confiança. Not. -Porquê? JC - Porque ele tinha um plano que foi tentado mesmo pelo general Costa Gomes, que era um bocado mais à esquerda. Costa Gomes veio a Moçambique tentar alimentar a ideia da FRELIMO de dentro e tentou enviar uma delegação para convencer a FRELIMO a parar com a guerra para que haja uma negociação da independência com a FRELIMO de dentro. O plano de Spínola não era ver Moçambique independente de forma total e completa. Desfizemos essas ideias porque as pessoas que eles enviaram compreenderam logo o que os portugueses pretendiam, pois já eram nacionalistas e juntaram-se a nós. Tínhamos a desconfiança, sim, mas apesar disso tínhamos de avançar. Só para descrever o cenário: em Lusaka tínhamos uma mesa, não a das conversações, mas aquela onde se encontrariam as negociações, em que as duas delegações quando entrassem tomavam um e outro lado da mesa. E então quando chegasse o Presidente Samora estenderia a mão para cumprimentar a contraparte ali atravessando a mesa. Mas Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros português), que certamente também já tinha ensaiado e tinha visto noutras negociações, ele que é socialista, deu a volta à mesa, ignorando o formal estender da mão do Presidente Samora e disse: o que é isso? Dá cá um abraço”. Ele estava com esse gesto a dizer que ele já não era um inimigo, mas um camarada como nós. Então aí ele próprio procurou tornar leve o ambiente. Mas nós ficámos sempre atentos, porque esse carinho podia ser uma maneira de nos levar a concluir facilmente que estávamos a seguir o mesmo objectivo, quando na verdade podia não ser. Not. - Esse gesto de Mário Soares fez uma distensão efectiva no decurso de todas as negociações? Sei que as conversações foram interrompidas e a parte portuguesa teve de regressar a Lisboa antes de o acordo ser selado… JC - Sim, voltaram porque não tinham todas as condições para negociar connosco. Voltando ao gesto de Mário Soares, o que foi bom com ele é que podíamos discordar dos pontos que discutíamos a sorrir. A importância do gesto de Mário Soares, que chefiava uma delegação que incluía alguns conhecidos nossos, como Otelo Saraiva de Carvalho, foi sabermos também dos limites do mandato que eles tinham nas questões que íamos abordar. Por isso, nesse primeiro encontro só se deu tempo para a delegação portuguesa regressar a Lisboa e repensar e buscar novo mandato. Assim foi e quando regressaram, com novo mandato, já não era Mário Soares a dirigir a delegação; era o Melo Antunes (ministro sem pasta no Governo de Spínola). Mas devo dizer que não foi logo de imediato. Entre este momento e os contactos iniciais houve muitos outros passos, como enviarmos o Aquino de Bragança a Lisboa, o Óscar Monteiro a outros lugares da Europa para se encontrar com delegações portuguesas. A partir desses contactos combinou-se um encontro com o Presidente Samora Machel em Dar-Es-Salaam, em que uma delegação, que incluía Mários Soares, conversou com ele. E à parte houve um outro encontro com os militares portugueses, com Melo Antunes presente, que culminou com um segundo encontro em Dar-Es-Salaam, onde se tomaram decisões importantes que foram materializadas no âmbito dos Acordos de Lusaka. Isso já se deu depois da tomada de Omar (Namatil), onde os soldados portugueses se renderam porque já não queriam combater. Portanto, a criação de confiança foi isso. Not. - O entendimento entre a FRELIMO e o Governo português em Lusaka trouxe ressentimentos em alguns sectores dos colonos, os chamados “ultra”, que criaram distúrbios em 1974 em Maputo. Ainda estavam em Lusaka quando chegaram as notícias. Qual foi a reacção da delegação da FRELIMO? JC - Quando isso chegou a Lusaka a delegação portuguesa já tinha partido. Nós ainda estávamos lá e a prepararmo-nos para abrir os champanhes com os jornalistas moçambicanos que cobriram as conversações, que já estavam a festejar connosco a vitória. Foi nessa altura que soubemos que a Rádio Moçambique (Rádio Clube na época) tinha sido tomada. Então dissemos aos jornalistas para continuarem com o champanhe, enquanto nós recolhíamos para resolver a situação, para nos informarmos melhor e traçarmos estratégias. Porque já as delegações estavam a caminho de Maputo (os portugueses) e para o norte do país (os da FRELIMO) para darem instruções sobre o cessar-fogo que tinha de acontecer à 00.00 hora, com esta notícia mandou-se parar tudo. Apesar de os preparativos se terem mantido, o Presidente Machel conseguiu uma ligação telefónica com o general Spínola exigindo que este resolvesse o que se estava a passar em Maputo, porque o que estava a acontecer, disse o Presidente Samora, correspondia ao plano de Spínola. Ele falou bastante, dizendo a Spínola que ele era um colonialista e que nós não aceitávamos esse plano dele. O Spínola ficou ofendido e disse a Samora “eu não entendo a língua que o senhor está a falar”. O Presidente Samora disse-lhe bem alto que a língua se chamava Português. Obviamente que Spínola ouvia e entendia. Not. - O que é que iria acontecer se não parassem os distúrbios em Maputo? JC - O Presidente Samora deu um prazo de 24 horas para que o Spínola resolvesse a situação, sublinhando-lhe que os nossos homens ainda estavam de armas nas mãos e em todas as posições, pelo que o cessar-fogo podia ser interrompido e os combates continuariam. Spínola prometeu fazer alguma coisa, mas na verdade a coisa foi resolvida localmente pela população, que marchou com pedras e com mãos vazias, barricando carros a caminho da rádio para repor a ordem. De qualquer modo se os portugueses não tratassem do assunto nós trataríamos com a continuação da nossa luta até conseguirmos o nosso objectivo que era liberar esta terra e os seus filhos. Not. - Integrou o Governo de Transição, saído no âmbito dos Acordos de Lusaka, e teve que lidar diariamente, no período que faltava para a proclamação da independência, com antigos inimigos. Com a composição do Governo de Transição, em que estavam nele guerrilheiros acabados de vencer no campo de batalha e senhores de um país por tantas décadas, não havia fricções ou animosidades no seio desse Governo? JC - Na verdade o Governo de Transição funcionou lindamente, posso assim dizer. Not. - Estava à espera disso? Foi o primeiro-ministro do Governo de Transição… Estávamos à espera que assim fosse, sim, por causa do espírito de Lusaka, em que se criou aquela confiança a que me referi. Entendemo-nos porque o papel de cada um estava claro e os interesses de cada uma das partes estavam também claros. Da parte portuguesa, por exemplo, o alto-comissário tinha como papel zelar pelos interesses do Estado português e dar confiança à população portuguesa que ainda estava no país e representar Moçambique no plano exterior. Isso acontece uma vez que nós ainda não éramos um Estado reconhecido, pelo menos do ponto de vista formal, podemos assim dizer, porque a independência ainda não tinha sido proclamada. Portanto, tudo que era assunto internacional tinha que passar pelo alto-comissário e assim foi. Evidentemente que havia de consultar o Governo de Transição antes de tomar alguma decisão. Trabalhámos bem em tudo. Posso citar até um exemplo que parece pequeno mas significativo que é o da retirada das tropas portuguesas, que ainda cá estavam, dos seus equipamentos, em que negociámos aquilo que devia ficar aqui e o que eles podiam levar. Havia coisas que não podiam levar, como paióis, hangares, quartéis, enfim as infra-estruturas… Not. - … e depois veio o 25 de Junho de 1975, senhor Presidente. Um dos grandes desafios que o novo país teve no campo diplomático, depois de a independência ter sido conquistada num contexto da Guerra Fria, em que o movimento de libertação, praticamente, já se tinha definido ideologicamente e ao mesmo tempo houve muita propaganda negativa contra a FRELIMO primeiro e contra o Estado moçambicano depois. Como é que se conseguiu colocar as pedras no tabuleiro e estabelecer relações com alguns países… JC -… com os Estados Unidos, é isso? Not. - Estados Unidos e outros de visão ideológica antagónica ou aparentemente antagónica. JC - Foi fácil em termos de princípios. Declarámos os nossos princípios mesmo na nossa constituição, em que dissemos claramente que a nossa política era fazer amigos com todos os países e que não havíamos de dar privilégios, seja a que país fosse e trataríamos todos por igual dentro do grande conceito de igualdade entre os Estados. Queríamos cooperação, porque reconhecíamos que nenhum país podia viver só em si. A independência significava o relacionamento com outros países dentro da sua independência. Portanto, a cooperação exigia independência e é essa a política que nós levámos a cabo e convidámos todos os países. No dia da proclamação da independência, o acto que se seguiu à tarde foi o de receber credenciais (diplomáticas). Há países que hesitaram, que não quiseram, pelo menos naquela altura, entregar credenciais imediatamente, como é o caso de grandes países ocidentais. Inglaterra, Estados Unidos da América e RFA (a antiga Alemanha Ocidental no contexto da divisão da Alemanha após a II Guerra Mundial), por exemplo, não apresentaram credenciais. Not. - Estes países foram convidados e estiveram representados na proclamação da independência? JC - Foram convidados e vieram. Tinham consulados aqui e estiveram. Portanto, não houve nessa altura estabelecimento de relações diplomáticas com esses países e com alguns deles as coisas arrastaram-se por muito tempo. Como ministro dos Negócios Estrangeiros a minha tarefa foi insistir em convidá-los. Primeiro queriam saber qual é a política que Moçambique ia seguir, porque pensavam que nós seguiríamos a União Soviética e que se assim fosse seríamos controlados pela União Soviética, etc., e por isso eles tinham que estudar as suas estratégias. Então essa era nossa tarefa no Ministério dos Negócios Estrangeiros, convencer esses países que o que nós queríamos era a amizade e que esquecíamos aquela cooperação que eles tinham com o Governo português durante a nossa luta armada de libertação nacional e que não interferiríamos na relação que eles continuavam a ter com o Governo português em assuntos que não nos diziam respeito, como é a questão daquela base nos Açores (base das Lages), que era um assunto entre o Governo português e os Estados Unidos. E de facto esse não era nosso problema e só seria se mexesse com a nossa independência. Nem a base nos Açores nem as bases soviéticas no Oceano Índico eram nosso assunto, apesar de que nós apoiávamos a desmilitarização do Oceano Índico. Estávamos preocupados em desenvolver relações bilaterais e quiçá através dessas relações bilaterais podíamos contribuir de forma construtiva para assuntos que dizem respeito às relações globais. Contudo, mais tarde todos os que hesitaram vieram ter e estabeleceram relações diplomáticas connosco. Not. - É neste contexto que o Governo de Moçambique conseguiu, estava o senhor na Presidência, mais recentemente, estabelecer relações diplomáticas com Israel, por exemplo? Israel é arqui-inimigo de um amigo de Moçambique, a Palestina, que tem com Moçambique uma amizade nascida da política de solidariedade activa que o Presidente Samora pôs em prática… JC - Não, não! Foi no contexto de que nós queríamos ser amigos de todos. Mas no caso de Israel nós não cooperávamos, enquanto não se reconhecesse a Palestina. Portanto, era preciso que houvesse reconhecimento da Palestina por parte de Israel. Foi na altura em que as duas partes chegaram a um acordo de mútuo respeito, ainda no tempo de Arafat (Yasser Arafat, falecido presidente da Autoridade Palestina). Então, houve um certo entendimento entre a Palestina e Israel e então nós decidimos acolher aqui uma embaixada da Palestina, que até hoje está cá. É por causa desse reconhecimento. É como aconteceria com as Coreias. Como as duas partes são internacionalmente reconhecidas pelas Nações Unidas, cooperámos com ambos. A questão de Israel pode ser tida como diferente por causa de avanços e recuos na busca de soluções entre as duas partes, mas há um reconhecimento mútuo em que existe uma Autoridade Palestina e um Governo de Israel que se inter-relacionam no que lhes diz respeito. Foi nessa altura que nós aceitámos que pudéssemos ter relações com Israel. Aliás, depois de Camp Davids, em que os egípcios e os americanos se reuniram para o desanuviamento das tensões naquela zona nós continuámos a apoiar a causa palestina. Not. - Num contexto como o actual, em que as alianças ideológicas têm pouco peso na relação entre os Estados, qual é o rumo que o Estado moçambicano deve tomar no contexto diplomático. JC - Nós devemos tomar, conservar e continuar a seguir aquele espírito de neutralidade e não alinhamento que nos caracterizou sempre e caracterizou igualmente os países africanos de uma forma ampla. Portanto, definimo-nos como não-alinhados em relação ao bloco do leste ou o bloco do oeste. Hoje nós não facilitaríamos a recriação de blocos ideológicos, pois cada povo deve desenvolver a sua própria ideologia mesmo que empreste princípios de ideologias que existiram outrora. Por exemplo, eu continuo a acreditar no socialismo na forma, embora pense que o socialismo não se possa aplicar de uma vez. Podemos ter formas capitalistas de governação ao mesmo tempo que nós resolvemos os problemas sociais que são os problemas de trazer maior igualdade, maior inclusão, etc., etc. Eu até costumo dizer que há coisas do socialismo que são praticadas mais rápido pelo capitalismo. No capitalismo também se tem tratado de problemas relativos ao trabalho, as lutas dos movimentos sindicais e os problemas resolveram-se quando os países socialistas queriam resolver de uma outra maneira, de uma outra via.
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